2008-08-22

Desgarrada 22 (os guerreiros)

Como é que alguém conseguia dormir no meio daquela confusão? Durante a sua breve passagem pelos braços de Orfeu e aproveitando a saída do meu sócio para um cigarro, pudera observá-lo de novo. Ele era robusto, másculo, mas ainda imberbe. Exactamente como eu gostava. O que eu não daria para poder levá-lo na garupa da minha R1 até Góis. Mas não, não podia. Tinha de ser uma mulher, aliás, uma gaja. E para manter a minha reputação intacta teria de ser o que anunciara ao meu sócio: uma ruiva. Mas isso não me preocupava, já topara uma bem fácil na sala.
Os meus pensamentos foram interrompidos com a súbita entrada no café de um novo e deveras estranho grupo.
Pouco depois o meu belo adormecido foi abruptamente acordado pelo companheiro de mesa. E ele olhava agora atónito para a mesa do lado da sua. Era um espanto perfeitamente justificado e que se propagava por toda a sala.
Eram quatro os recém chegados. Uma enfermeira de meia-idade, anafadamente roliça, coarctada numa curtíssima bata branca, nitidamente dois números abaixo do correcto, cabelo oxigenado e batom vermelho berrante. Um padre franzino e amarelado, com o cabelo negro em longas tranças rasta, pesadamente agasalhado num sobretudo preto e com um crucifixo de madeira negra ao peito. Um travesti muito mal conseguido, pois nem a base mais compacta poderia disfarçar a rija barba que começava a despontar na sua cara e não seria certamente aquele vestido colante amarelo e laranja que poderia disfarçar as formas viris e musculadas do seu corpo. E por fim um – ou seria uma – anjo. Era a única maneira que encontrava para descrever aquele ser etéreo, andrógino e luminoso. O seu rosto era belo de uma maneira serena e natural. O seu cabelo era de um loiro quase branco que parecia formar uma auréola de luz à volta da sua cabeça. O seu corpo escorreito era delicado e firme, não dando qualquer indicação conclusiva sobre o seu género.
O grupo dos quatro estudava com ar atento e preocupado um papel pardacento que tinham desdobrado sobre o tampo da sua mesa. Falavam entre si com sussurros carregados de secretismo. Era uma verdadeira antinomia. Estariam eles convencidos que passavam despercebidos? Não teriam lugar mais privado para aquela reunião secreta de singularidades?

2008-08-20

Desgarrada 21 (o regresso?)

Vozes. Movimentos.
Risos. Pancadas.
- Acorda, pá!
Acordou. Olhou em volta.
- O que foi? – Balbuciou, estremunhado.
- Epá, o marmelo foi com a ruiva para a casa de banho e tu adormeces. Eu para aqui a palrar sozinho...
A visão do belo (ou talvez não) adormecido (ou talvez não) estava turva e ainda misturava imagens soltas de uma peça de teatro, ruas movimentadas e enfermeiras esfomeadas.
- Tenho que deixar de beber.
- O quê? – Respondeu-lhe o despertador.
- Nada... – E virou-se para o empregado. - Outra imperial!
Não percebia nada daquilo. Umas vezes adormecia e sonhava sobre coisas absurdas, outras vezes estava acordado e sonhava sobre coisas absurdas. Já não percebia nada daquilo. Já não conseguia, por vezes, discernir quando é que o que via era real.
Por fim, o empregado colocou uma bebida na mesa, à sua frente. Pegou no copo e engoliu a desejada mistela.
Virou-se para o companheiro do lado, que o despertara há pouco.
E então, mais uma vez, deparou-se com um cenário absurdo.