2006-07-26

Tudo Por Tudo

Ana entrou no café, ainda confusa com a carta que recebera a marcar encontro. A caligrafia e o modo como tinha sido redigida eram-lhe muito familiares - demasiado familiares. O seu olhar percorreu as mesas todas até se fixar numa delas. Os segundos seguintes foram de choque. Na mesa encontravam-se dois homens a olhar para ela. Um deles exibia um largo sorriso. Ela aproximou-se lentamente, olhando desorientada para ele.
- Xinta?... És mesmo tu?!
O homem continuava a sorrir.
- Não acredito!
A voz familiar soou com a mesma energia com que ela a ouvira muitas vezes há anos.
- Mas podes acreditar! Sou mesmo eu!
- Mas... não podes estar vivo... eu vi...
- Desculpa, prima, mas toda a gente tinha que acreditar nisso. Para o mundo, morri há sete anos. Foi uma encenação difícil mas necessária. E nada foi tão difícil como suportar as saudades tuas... - Explicou Xinta, comovido.
Ana cambaleou. Xinta levantou-se e agarrou-a. Abraçaram-se durante longos momentos, emocionados. Fitaram-se depois durante breves segundos, findo os quais ecoou um estalo que obrigou diversas pessoas a olhar para o par.
- Estúpido! Estavas vivo e nunca me disseste nada!
- Calma, prima! - protestou Xinta enquanto massajava a face dorida - Se não disse foi porque não podia! Vá, senta-te. Já te explico...
Ele voltou para o lugar que ocupava e Ana sentou-se em frente aos dois homens. Xinta suspirou e começou a falar, tristemente.
- Bom... Para começar, deves ter percebido que aquela família me fez algo de muito mau. Enfeitiçaram-me e obrigaram-me a casar com a filha... Fizeram vudus ou algo do género... Aqui o meu amigo Carlos é que sabe explicar. Para me conseguir libertar tinha que estar durante muito tempo longe e, simultaneamente, ninguém podia perceber que eu estava vivo, de outro modo corria o risco de reforçarem o feitiço. Queria dizer-to quando estiveste ao pé de mim, no leito de morte, mas não podia... Desculpa, prima!
Após alguns momentos de silêncio, Ana ripostou:
- Mas tu estavas doente!
- Esse foi um dos muitos truques aqui do Carlos. Ele lida com certas coisas às quais eu e tu sempre nos mantivemos cépticos.
Ana manteve-se em silêncio um bom bocado antes de elaborar uma pergunta.
- E a tua mulher? Quero dizer, viúva...
- Bom... anda por aí... esse é um assunto que está por resolver. Mas neste momento estou seguro. Ou quase...
- Quase?...
- Bem, para me restabelecer completamente eu deveria estar mais uns três anos longe "deles". Mas um assunto grave e urgente trouxe-me de volta e temos que o resolver antes de eu poder pensar em mim e no que vou fazer em relação à minha... viúva.
- E que assunto é esse? - perguntou Ana, ainda atordoada.
Carlos tomou a palavra.
- Ana, lembra-se de ter avistado com o seu primo, em pequena, uma criatura estranha que os seguiu num cemitério?
Ana olhou para Carlos ao mesmo tempo que percorria a memória revivendo a perseguição que, em pequena, lhe fora feita por uma forma fantasmagórica desde o cemitério até ao centro da aldeia em que viviam.
- Como poderia esquecer? Mas não percebo...
- Calma, já vais perceber - interrompeu Xinta. Carlos continuou.
- Assustaram-se nessa noite porque não tiveram a noção do que realmente aquilo significava. Essa forma não vos fez mal porque não quis nem era esse o seu objectivo. Desde que nasceram que têm sido vigiados por certas pessoas e certas entidades. Esses... guardiães tentam proteger-vos de tudo o que possa destruir a vossa essência. Aquela forma tinha como missão apenas assustar-vos e fazer com que saíssem do lugar onde estavam.
- Não estou a perceber...
Xinta interrompeu.
- O que ele quer dizer é que nós somos especiais e passámos a vida a ser disputados por forças que nunca suspeitámos existirem e, por isso mesmo, nunca nos apercebemos de nada. Isso inclui o nosso amigo Paulo, que estava connosco nessa noite. Aliás, neste momento ele espera-nos em Escárpia.
- O Paulo?! - Ana fitou Xinta boquiaberta - Também está vivo?! Mas ele também morreu...
Ana atrapalhou-se e Xinta sorriu.
- O Paulo está bem vivo, como eu. Ouve, Ana, temos que te explicar muita coisa e preparar-te para certos acontecimentos que estão iminentes...
Carlos tomou a palavra.
- Escute, Ana! É muito importante que recupere rapidamente do choque de ver o Xinta vivo. Precisamos de si para uma dura batalha que se irá travar e não temos muito tempo a perder.
- Esperem! Eu desisto... - interrompeu Ana, cada vez mais confusa - É que não estou a perceber mesmo nada! - olhou para Xinta - Tu apareces-me aqui, vivo após todo este tempo em que não tive notícias tuas e acompanhado de um homem que diz estas coisas ... Desculpa, mas estou perdida!
- É demais para ela neste momento - disse Xinta.
- Concordo... - assentiu Carlos - Vocês têm que pôr a conversa em dia. É necessário que ela se acalme antes de ouvir o resto.
Carlos levantou-se.
- Vou ter convosco a Escárpia amanhã. Vocês devem seguir para lá imediatamente. Lembra-te do que está em jogo, Xinta.
- Não te preocupes. Estaremos lá!
- Adeus, Ana. E até breve... - despediu-se Carlos, ao encaminhar-se para a saída.
Ana e Xinta fitaram-se durante largos momentos, ela perplexa e confusa e ele sabendo que tinha que a preparar para algo que ninguém poderia imaginar existir. Ao fim de algum tempo, ele falou:
- Desculpa, prima, mas vamos ter que te fazer compreender. O tempo escasseia e muita coisa má pode acontecer. Tudo o que tu conheces e tens por garantido irá, em breve, mudar por completo. É por esse motivo que temos que ir imediatamente para Escárpia. Vamos partir imediatamente e falamos pelo caminho. Pode ser?
Ana assentiu maquinalmente com a cabeça. Apesar de momentaneamente não conseguir raciocinar, a confiança que sempre mantivera no seu primo era instintiva.
- Vamos, então! - Xinta levantou-se e estendeu a mão à prima. - Vamos ao encontro do resto do nosso exército... - E, baixando a cabeça, rematou em voz baixa: - O Exército da Luz!