2007-09-07

Desgarrada 18 (limbo)

Conduzia furiosamente a caminho de casa. Que merda de dia! Esta nova geração de actores não têm alma a representar. Já estava arrependido da escolha da peça. Encenar aquilo era uma tortura. O raio do narrador era quem tinha mais “falas”. Mas limitava-se a ler o texto, não o sentia.
E para terminar em beleza, ainda tinha levado com aqueles panascas da Foice Verde. Reconhecera de imediato a tromba do chefinho, ultimamente estava sempre a aparecer nos telejornais. Mas se julgava que se iam barricar no “seu” teatro estava muito enganado. Agora até já os revolucionários eram uma treta. O tipo devia achar que bastava vestir umas roupas esquisitas, abanar na mão um objecto estranho e fazer-se acompanhar por uma boa quantidade de tolos, para assustar alguém. Se querem fazer revoluções que peguem em armas como revolucionários a sério! Mas a arma mais perigosa que aqueles putos deviam saber manusear era a faca eléctrica da mãezinha.
Tentou acalmar-se. Sabia bem de onde lhe vinha toda aquela frustração e raiva. A peça, os actores e a foicezita nada tinham a ver com este estado de espírito. No fundo sabia que era a questão do livro que o azedava. O seu desejo de avançar estava constantemente a esbarrar na inércia do seu camarada. Camarada não era o termo certo, pelo menos segundo as editoras que continuavam a negar-lhes a publicação, o nome correcto era co-autor. Gostava de escrever com ele e tinha a perfeita noção de que ele lhe era muito superior como escritor. Mas então porque raio não havia disponibilidade nem vontade de lutar pelo objectivo que supostamente era comum?
Os seus pensamentos foram interrompidos por um grande estrondo que se propagou da traseira do carro até ao interior do seu crânio. Perdeu o controlo do automóvel e também da situação em que se encontrava. Apenas sabia que o carro rodopiava e seguia vertiginosamente no escuro em direcção ao desconhecido. Em questão de segundos perdeu também a noção de si próprio.