2015-07-22

Ontem matei os neurónios maus


Paulo chegou a casa, exausto, como de costume. Mandou o casaco para cima de uma cadeira, tirou a gravata e o relógio, descalçou os sapatos e estendeu-se no sofá. As chatices do trabalho ainda lhe ocupavam os pensamentos.
Nem dois minutos depois o silêncio começou a castigar-lhe os ouvidos. Pegou no comando da TV e num zap rápido parou no primeiro canal de desporto. Já com a sala cheia de vozes, levantou-se, foi até à mesinha do canto, serviu-se de um generoso whisky e deu dois bons goles. Antes de voltar ao sofá decidiu que era melhor levar a garrafa consigo.
Olhou à volta, pensando que a casa estava a ficar tão suja que qualquer dia não tinha remédio e o melhor seria mudar de casa. Riu-se sozinho com a estupidez deste pensamento. A vida estava mesmo boa para mudanças de casa! Com a desculpa da crise, já lhe levavam metade do ordenado em impostos. O raio da crise começou por lhe chegar na perda dos pequenos confortos. As saudades que ele tinha da sua ucraniana. Sua, salvo seja, mas a velhota era o anjo que semanalmente transformava o seu apartamento num imaculado lar. Bem, imaculado sim, que ela limpava tudo mesmo muito bem, lar é que era duvidoso. Desde o divórcio nunca mais sentira que tinha lar.
Bebeu mais um grande trago do seu whisky.
Lar é família reunida num espaço confinado onde se inferniza e se ama. Soltou uma solitária gargalhada e pensou que depois de velho estava a dar em poeta.
Mas na verdade as filhas tinham crescido e agora já nem aos fins-de-semana iam a sua casa. A bem dizer nem à casa da mãe. Estavam na fase do viver juntas com os namorados.
Modernices que um homem de cinquenta anos, supostamente, deveria compreender.
Cinquenta anos, quase cinquenta anos, faltavam apenas três dias. Mirou a sua “pança de cerveja” e pensou que raio de nome tinham inventado. Ele até bebia pouca cerveja. Ele era mais whisky e, olhando o copo quase esquecido na sua mão, bebeu o que restava. Pegou na garrafa e atestou o copo de novo.
Hoje ia precisar de uma dose um bocadito mais forte. Aquele encontro casual à porta da papelaria deixara-lhe a boca seca e um hálito amargo. Porque é que fora comprar tabaco? Ainda tinha quatro maços em casa. Como dizia o outro “não havia necessidade”. Mas fora, e bolas! Assim que se cruzara com ela reconhecera-a. Querida Joana. E estava linda e boa como sempre. Os olhos tinham-lhe fugido de imediato para o generoso decote. E vieram-lhe à memória os tempos em que as suas mãos por ali deambulavam livremente. Mas controlou-se e subiu o olhar até aos olhos castanhos impecavelmente pintados. Arrependeu-se. Eram espelhos que lhe devolviam a sua imagem desgastada e envelhecida, dizendo-lhe “Como tu estás! Tão acabadinho! Ainda bem que me deixaste!”. Nesse olhar misto de desagrado, desprezo e pena, ele sentiu-se reduzido a um pensionista que joga suéca no banco de jardim.
Perdido nestes pensamentos emborcou o whisky de uma vez e voltou a servir-se.
Também, a miúda era mais nova que ele uns dez anos. Ele com quarenta também ainda estava em forma. Encolheu a barriga e tentou lembrar-se como era dez anos antes. Desistiu, pensando que as gajas é que se preocupavam com essas tretas. Um homem é um homem. Com barriga, com barba branca, com careca, seja lá como for. Não são esses pormenores que nos tiram a confiança.
Três goles mais tarde ainda não tinha percebido o que lhe tirara a confiança. As pitas de vinte anos a quem não conseguia achar graça porque se lembrava sempre que tinha duas filhas da mesma idade? As fulanas da sua idade que o tentavam seduzir apertadas em cintas e meias para as varizes? Noites de mau sexo e ainda pior companhia?
Nicles. Nem ideia. Não sabia porquê, ultimamente não tinha vontade. Sabia que não era sexo que lhe andava a fazer falta. Mas até nos seus pensamentos lhe custava admitir o que de facto lhe fazia falta. No entanto, o pensamento, veloz na mente já ligeiramente turva, foi: faz-me falta o amor. Levantou-se e com uma careta gritou alto “Bolas, pareço uma menina de quinze anos!”.
Ficou tonto de tão rápido se levantar. Costumava aguentar bem a bebida, mas sentiu a sala a balançar. Decidido a “ensopar” o estômago e quebrar aquela vergonhosa linha de pensamento, foi até à cozinha e enfiou uma refeição congelada no microondas.
Foi bebendo mais uns goles, enquanto o prato girava, tentado pensar no jogo de sábado e nas possibilidades de ganharem o campeonato.
Voltou para a frente da tv, com a paparoca quente e o copo. Agora com a comida até ia uma cervejola. Mas não voltou a levantar-se e acabou por acompanhar o repasto com whisky. E os três cigarros que se seguiram à refeição também foram generosamente acompanhados pela sua bebida de eleição. De eleição o tanas, pensou, que a crise já não me deixa chegar ao whisky velho.
Acordou e assustado olhou em volta, pensando onde estaria o cigarro que estava a fumar. Estava caído no chão, felizmente apagado e mais uma vez o desastre não acontecera. Um dia destes ia ser como nas notícias, os bombeiros a confirmar que tinha morrido carbonizado no sofá porque adormecera a fumar.
Bolas, já era de dia!
Levantou-se, tonto, procurou o relógio. Era tardíssimo. Se tomasse o duche de que tanto necessitava já não ia chegar a horas ao trabalho. Mas tinha que ser. Estava amarfanhado por dentro e por fora. E precisava de água a correr-lhe na cabeça durante aí uma meia hora para estar em condições de conduzir.
Cinco minutos de água fresca na cabeça acordaram-no o suficiente para começar a pensar racionalmente. E a ideia surgiu forte e clara na sua mente. Tentou afastá-la como idiota e parva que era. Mas a ideia voltava. E abanou a cabeça numa negação do que lhe ia na alma, mas a decisão estava definitivamente tomada. Ia pagar para ter amor!!!
Chiça, ao ponto a que ele tinha chegado! E muitas questões lhe foram surgindo. Será que vou passar uma vergonha do caraças? Será que vai correr tudo bem? E será que pagando haveria amor? A todas as questões tinha de responder com: só depois de experimentar é que poderei saber.
Nesse dia, depois do trabalho, pouco confiante mas decidido, procurou o estabelecimento de que já ouvira falar. Sem certezas, entrou naquele espaço barulhento, quente, húmido e escuro. Procurou a dona e disse-lhe ao que ia. A mulher, depois de receber o dinheiro da sua mão, levou-o para uma salinha nos fundos e disse-lhe “Aí estão. Escolha a que mais lhe agradar”.
Paulo percorreu a sala com o olhar e soube de imediato que ela era perfeita para si. Linda, com uns olhos verdes capazes de enfeitiçar qualquer um.
Esticou os braços e, gentilmente, agarrou-a fazendo-lhe carinhos.
Ela não se fez rogada, com um olhar carregado de amor, deu-lhe uma marradinha, ondulou a cauda e disse-lhe “Miau!”.

2015-07-20

Alface

Eram quase oito e meia quando bateram à porta. Corrijo, bateram contra a porta.
Levantei-me e, tão rápido quanto pude, fui abri-la. Era o Morto. Subtil como sempre, pensei.
Nunca percebi porque lhe chamavam Morto. Não estava obviamente morto. Mas também não me lembrei de perguntar.
- Olá - cumprimentou, com uma voz arrastada e rouca. Teria estado a beber?
- Então, estás bem? - retorqui.
- Vou andando.
Encolheu os ombros. Ou teria sido um espasmo?
Voltei para a cozinha, com o Morto atrás de mim. Ofereci-lhe uma cadeira e sentei-me.
- Estava a almoçar - apontei para o prato. - És servido?
O Morto analisou a minha refeição com curiosidade.
- Obrigado, já comi.
- E então, há novidades?
O Morto começou a responder, mas uma tosse violenta assolou-o. Era, obviamente, o resultado de décadas a fumar. Bati-lhe nas costas firmemente, mas com cuidado.
Quando acalmou, disse lentamente:
- Juntaram-se mais dois ao grupo, hoje. Andavam perdidos por aí, à procura de comida.
Eu sorri.
- E então, estão a adaptar-se?
- Penso que sim - vi um brilhozinho maléfico momentâneo no olhar do Morto. - Um deles ficou um pouco maltratado. Enfim...
Era o costume. As pessoas não tinham comida, morriam à fome, e quando nós oferecíamos uma alternativa de subsistência, resistiam. Claro que tinham que dar algo em troca, mas o Mundo sempre funcionou assim. Ninguém dá nada a ninguém. E muito menos com a crise que agora se havia instalado.
Recomecei a comer.
- O que é isso? - questionou o Morto.
- Alface.
Fez uma pausa, e sorriu. Faltava-lhe mais um dente.
- Agora comes saladas?!
- Sempre fui vegetariano, porque é que havia de mudar agora?
- São circunstâncias diferentes. Precisas de energia para lutar e resistir. Não te vais aguentar muito tempo a comer essas coisas.
Olhei para ele de soslaio. Acrescentou:
- É como dizia a minha avó, salada não puxa carroça.
Não era bem assim que eu me lembrava do provérbio, mas deixei passar.
Fez-se silêncio.
- O que aconteceu ao teu dente?
O Morto encolheu os ombros.
- Perdi-o. Não era verdadeiro, de qualquer maneira. Depois arranjo outro.
Dei uma gargalhada. A forma como o Morto resolvia facilmente os seus problemas era notável.
- Acredito. Vais tirar um a um dos novos recrutas, calculo.
Sorriu de felicidade, como uma criança de cinco anos a quem se dá um presente de Natal. Creio ter-lhe dado a ideia que precisava, pois levantou-se de imediato.
- Bom, tenho que ir.
- Muito que fazer?
Continuava a sorrir.
- Sempre.
Continuei a comer.
- Então, adeus.
- Adeus.
Saiu, batendo desajeitadamente com a porta da rua.
Fiquei pensativo, a olhar para uma folha de alface. De facto, talvez o Morto tivesse razão. Esta comida já não era para mim.
Levantei-me e fui até ao quarto. Estava desarrumado e sujo. Quanto a mim, até tinha medo de me ver ao espelho. Mas arranjei coragem. Estava desgrenhado, mas não muito pior que no dia anterior.
Um pensamento ocorreu-me novamente: nunca percebi porque lhe chamavam Morto. Não estava obviamente morto.
Pelo menos, já não.
Fiquei ali especado, em frente ao espelho, a pensar em como os zombies tinham mau aspecto.

Diários de uma ex-obsessiva-compulsiva apaixonada II



Maria passara dez anos sem homem, sem desejo, sem paixão, sem sexo, sem amor.
Nunca sentira solidão. Mesmo sozinha nunca se sentia só.
Nunca sentira falta de afecto e carinho. A família era disso uma fonte inesgotável.
Nunca sentira vontade de intimidade. Estranhamente essa necessidade desaparecera.
Nem de companhia para uma conversa sentira a falta, pois desenvolvera uma estranha capacidade de falar consigo própria. E, nem sempre de acordo com ela mesma, conseguia “debater” todos os assuntos de forma calma.
Por vezes, quando o peso do trabalho era muito, sentia falta de ajuda. De alguém que dividisse o peso. Mas eram breves instantes que sacudia da cabeça com um sorriso de quem sabe que todas as ajudas têm um preço e de quem tem a certeza de que não vale a pena pagá-lo. Por isso foi lutando com todos os pesos que a vida se encarregou de lhe colocar no jugo.
E o consolo também não lhe fazia falta. Maria descobriu que quando a dor é intolerável de nada serve ter alguém ao lado. As nossas dores não são divisíveis. A pena dos outros apenas nos enfraquece a alma. Por isso a vida foi dando as suas retorcidas e tortuosas voltas e Maria foi-se isolando cada vez mais.
A paz das chatices do dia à dia, que nos ocupam sem nos magoar, instalou-se na sua vida.

Nada faria supor que rever alguém passados vinte anos beliscasse tamanha inércia.
Mas a intensidade daquele olhar perfurou a grande carapaça e verteu-se, derramou-se nas suas entranhas. Aqueles olhos feitos de fogo e água deixaram escaldante o seu coração amolecido pelo eco de um amor renascido.
Mas o toque daquelas mãos nas suas fizeram-na sentiu-se possuída por sensações que já não lembrava, por vontades sôfregas que já pensava mortas, por sentimentos que já julgava imaginados.
Naquele olhar voltou a ser jovem, voltou a amar, voltou a desfrutar das delícias e das torturas da paixão.
Maria sentia agora a dor de amar quem não podia, quem não devia, quem nunca voltaria a gostar dela. Ela sofria por perder aquilo que não tinha agora e antes não quisera ter.
E pensava “Aqui tens a tua vingança por toda a mágoa e sofrimento que te causei há vinte anos atrás”.
E desejava “Como seria bom voltar aos teus braços e abraços”.
E sonhava “Perdoa-me meu amor que nunca mais irei magoar-te”.
E sofria no arfar do peito dorido de tanto suspiro sem resposta.

Maria passara dez anos sem homem, sem desejo, sem paixão, sem sexo, sem amor.
Nunca sentira falta de companhia, de intimidade, de carinho, de nada.
De nada, excepto dele! Presa ao passado de um amor que já não é seu. A cada segundo sofre por não estar com o seu amado de há trinta anos atrás…

2015-07-14

Diários de uma ex-obsessiva-compulsiva apaixonada I


Não é fácil viver com quem pensa que dois milímetros são a diferença entre algo que está no sítio ou está desarrumado.
Não é fácil gostar de quem por dois segundos considera algo atempado ou atrasado.
Não é fácil amar alguém para quem dois nicos são a diferença entre certo e errado.
Mas mais difícil ainda é perder a vida a reparar em dois milímetros, em dois segundos, em dois nicos.
Mais grave ainda é maltratar quem se ama porque não se ajusta às grelhas que lhe impões.
Mais duro ainda é fugir do amor porque ele não é perfeito.
E tão dolorosa maleita terá cura?
Gostava de dizer que nem tudo está perdido. Mas na verdade antes da cura muito se perde. Perde-se a beleza do desalinho. Perde-se o deleite do desregrar. Perde-se a intensidade do amor que não se compraz com espaço e tempo pré-definidos.
Gastas meia vida sem obter cura ou curas-te num punhado de segundos amargos.
A morte de uma mãe é um erro tão grave que não há sítio correcto para acontecer, não há hora certa para decorrer, não há forma alguma de a corrigir.
Para sempre tudo ficará errado e a única maneira de sobreviver é descobrir que nem tudo tem um lugar, uma hora e uma razão.
E de repente passas a largar coisas onde calha, a chegar tarde porque sim, a fazer coisas sem um motivo.
E passas a perder coisas e horas e nicos.
Mas se ele voltar, que seja no sítio errado, à hora errada, com tudo errado, sabes que nunca mais perderás o amor!

2008-08-22

Desgarrada 22 (os guerreiros)

Como é que alguém conseguia dormir no meio daquela confusão? Durante a sua breve passagem pelos braços de Orfeu e aproveitando a saída do meu sócio para um cigarro, pudera observá-lo de novo. Ele era robusto, másculo, mas ainda imberbe. Exactamente como eu gostava. O que eu não daria para poder levá-lo na garupa da minha R1 até Góis. Mas não, não podia. Tinha de ser uma mulher, aliás, uma gaja. E para manter a minha reputação intacta teria de ser o que anunciara ao meu sócio: uma ruiva. Mas isso não me preocupava, já topara uma bem fácil na sala.
Os meus pensamentos foram interrompidos com a súbita entrada no café de um novo e deveras estranho grupo.
Pouco depois o meu belo adormecido foi abruptamente acordado pelo companheiro de mesa. E ele olhava agora atónito para a mesa do lado da sua. Era um espanto perfeitamente justificado e que se propagava por toda a sala.
Eram quatro os recém chegados. Uma enfermeira de meia-idade, anafadamente roliça, coarctada numa curtíssima bata branca, nitidamente dois números abaixo do correcto, cabelo oxigenado e batom vermelho berrante. Um padre franzino e amarelado, com o cabelo negro em longas tranças rasta, pesadamente agasalhado num sobretudo preto e com um crucifixo de madeira negra ao peito. Um travesti muito mal conseguido, pois nem a base mais compacta poderia disfarçar a rija barba que começava a despontar na sua cara e não seria certamente aquele vestido colante amarelo e laranja que poderia disfarçar as formas viris e musculadas do seu corpo. E por fim um – ou seria uma – anjo. Era a única maneira que encontrava para descrever aquele ser etéreo, andrógino e luminoso. O seu rosto era belo de uma maneira serena e natural. O seu cabelo era de um loiro quase branco que parecia formar uma auréola de luz à volta da sua cabeça. O seu corpo escorreito era delicado e firme, não dando qualquer indicação conclusiva sobre o seu género.
O grupo dos quatro estudava com ar atento e preocupado um papel pardacento que tinham desdobrado sobre o tampo da sua mesa. Falavam entre si com sussurros carregados de secretismo. Era uma verdadeira antinomia. Estariam eles convencidos que passavam despercebidos? Não teriam lugar mais privado para aquela reunião secreta de singularidades?

2008-08-20

Desgarrada 21 (o regresso?)

Vozes. Movimentos.
Risos. Pancadas.
- Acorda, pá!
Acordou. Olhou em volta.
- O que foi? – Balbuciou, estremunhado.
- Epá, o marmelo foi com a ruiva para a casa de banho e tu adormeces. Eu para aqui a palrar sozinho...
A visão do belo (ou talvez não) adormecido (ou talvez não) estava turva e ainda misturava imagens soltas de uma peça de teatro, ruas movimentadas e enfermeiras esfomeadas.
- Tenho que deixar de beber.
- O quê? – Respondeu-lhe o despertador.
- Nada... – E virou-se para o empregado. - Outra imperial!
Não percebia nada daquilo. Umas vezes adormecia e sonhava sobre coisas absurdas, outras vezes estava acordado e sonhava sobre coisas absurdas. Já não percebia nada daquilo. Já não conseguia, por vezes, discernir quando é que o que via era real.
Por fim, o empregado colocou uma bebida na mesa, à sua frente. Pegou no copo e engoliu a desejada mistela.
Virou-se para o companheiro do lado, que o despertara há pouco.
E então, mais uma vez, deparou-se com um cenário absurdo.

2007-11-07

Desgarrada 20 (Inferno)

Escuridão. Dor.
Sons. Dor.
Luz. Dor.
Movimentos. Dor.
Picada. Alívio!
Acordou ao som de vozes alegremente incentivantes, embalado por movimentos ritmados e uma agradável sensação de calor.
A primeira coisa a conseguir interpretar foram os cheiros. Sem dúvida estava num hospital. Pensou “estão a reanimar-me, chamam-me à vida, afinal não morri”.
Depois foram os sons a ganhar significado. Aplausos acompanhavam as vozes risonhas:
- Força! Vai, vai, vai!
Abriu os olhos lentamente e a realidade não encaixou nos parâmetros que tinha predefinido. Porque estava aquele par de mamas enormes a bater-lhe nos olhos?
Tentou focar para além delas. Três velhotas com uniforme de enfermeiras riam matreiramente e aplaudiam saborosamente algo que estava a acontecer por cima dele.
Abarcou a situação mas sem conseguir processá-la: estava a ser vigorosamente montado por uma matulona de fartas carnes.
A coisa fez finalmente sentido. Afinal estava no inferno. Sim. Fazia muito mais sentido. Decidiu intervir:
- Olha lá ò filha, chama o cornudo do teu chefe e diz-lhe que prefiro o castigo do fogo.

2007-09-13

Desgarrada 19 (céu)

Ganhou lentamente a consciência, apercebendo-se da luz intensa (mas não agressiva) e do suave som distante provocado pelas ondas de uma praia. Repousou assim durante alguns minutos, até que uma voz feminina o retirou do limbo.
- Já está acordado?
- Hum... - anunciou. - Estou no hospital?
- Hospital? Nah! Nem deu para isso.
- Hum?
Abriu os olhos e deparou com uma velhota cuja expressão denotava simpatia a meias com alguma resmunguice.
- Eu sou a Sandra.
- Hum...
- E tu morreste.
- Hum?!
Ele levantou-se, num salto.
- Isso é uma brincadeira parva! Quero ver o médico!
- Ah... está bem, daqui a bocado já O vês. Entretanto vai preenchendo estes papéis... Espero que tenhas morrido com algumas moedas no bolso para poderes pagar os impressos. Vá, despacha-te. Depois avisa quando estiver tudo, que eu tenho mais que fazer.
- Mas, mas...
...mas a senhora já tinha saído da sala, deixando-o sozinho e embasbacado.

2007-09-07

Desgarrada 18 (limbo)

Conduzia furiosamente a caminho de casa. Que merda de dia! Esta nova geração de actores não têm alma a representar. Já estava arrependido da escolha da peça. Encenar aquilo era uma tortura. O raio do narrador era quem tinha mais “falas”. Mas limitava-se a ler o texto, não o sentia.
E para terminar em beleza, ainda tinha levado com aqueles panascas da Foice Verde. Reconhecera de imediato a tromba do chefinho, ultimamente estava sempre a aparecer nos telejornais. Mas se julgava que se iam barricar no “seu” teatro estava muito enganado. Agora até já os revolucionários eram uma treta. O tipo devia achar que bastava vestir umas roupas esquisitas, abanar na mão um objecto estranho e fazer-se acompanhar por uma boa quantidade de tolos, para assustar alguém. Se querem fazer revoluções que peguem em armas como revolucionários a sério! Mas a arma mais perigosa que aqueles putos deviam saber manusear era a faca eléctrica da mãezinha.
Tentou acalmar-se. Sabia bem de onde lhe vinha toda aquela frustração e raiva. A peça, os actores e a foicezita nada tinham a ver com este estado de espírito. No fundo sabia que era a questão do livro que o azedava. O seu desejo de avançar estava constantemente a esbarrar na inércia do seu camarada. Camarada não era o termo certo, pelo menos segundo as editoras que continuavam a negar-lhes a publicação, o nome correcto era co-autor. Gostava de escrever com ele e tinha a perfeita noção de que ele lhe era muito superior como escritor. Mas então porque raio não havia disponibilidade nem vontade de lutar pelo objectivo que supostamente era comum?
Os seus pensamentos foram interrompidos por um grande estrondo que se propagou da traseira do carro até ao interior do seu crânio. Perdeu o controlo do automóvel e também da situação em que se encontrava. Apenas sabia que o carro rodopiava e seguia vertiginosamente no escuro em direcção ao desconhecido. Em questão de segundos perdeu também a noção de si próprio.

2007-08-31

Desgarrada 17 (666)

- Porra, pá! - berrou de novo o encenador. - Agora são vocês?! Mas estão a gozar comigo? A vossa peça não é neste palco, pisguem-se para outro lado! E que raio de texto é esse? Foice Verde?! Quem é que escreveu essa porcaria?
Um grupo de dez pessoas encontravam-se à porta da sala e um deles, envergando timidamente uma foice verde, respondeu surpreendido:
- Não, não está a perceber! Nós somos do Grupo Radical Foice Ver...
- Eu ouvi à primeira! - gritou o encenador. - E eu já vos disse para desandarem! Vão ensaiar para outro lado!
- Mas... mas eu... nós viemos para barricar...
- E que raio de adereços são esses?! Quem é que vos arranjou umas roupas tão ridículas?
- Espere... não... nós somos...
- Vocês são é uns badamecos! Querem ser artistas? Vão para o circo!
O homem da foice já desesperava:
- Nós somos da Foice Verde! Foice Verde! Está a perceber? Foice Verde!
- Epá, desandem! - berrou o encenador. - Vão aprender a escrever e a representar e voltem cá quando vos tiverem desmamado!
O líder do Grupo Radical deu um gritinho e saiu da sala a correr, deixando cair a foice. Os restantes recém-chegados seguiram-no, cabisbaixos, olhando de soslaio para aquela besta enfurecida.
O homem da tarte de morango sussurou para a ruiva:
- Aquele era mesmo o líder da Foice Verde?
- Não sei... - respondeu ela. - Mas foi-se verde...

2007-08-29

Desgarrada 16 (verde azeitona)

As luzes da plateia acenderam-se e o encenador entrou furioso no palco vociferando:
- Porra pá! Dou-vos espaço para improviso para quê? Tu metes um taco de basebol nas calças? Tás parvo? Achas isso credível? E tu ruivona, tens de ser mais convincente! Parecia que lhe estavas a coser o botão das calças e não a fazer um bóbó. Em vez de uma femme fatale pareces é uma puta da rotunda do relógio. E aqui o panasca quase me convenceu que afinal é hetero. Está fraco, muito fraco! Está uma merda!
Ao fim de três semanas continuava tudo na mesma. O encenador não se mostrava satisfeito com nada. Aquela peça parecia uma tortura infinda para os actores. Sempre as mesmas críticas mordazes e insultuosas. Prepararam-se para ir jantar e esquecer mais um dia de frustração total.
O berro vindo da entrada apanhou-os a todos desprevenidos:
- Ninguém se mexe! Isto é uma intervenção do Grupo Radical Foice Verde. Vamos barricar-nos neste teatro até que as nossas exigências sejam satisfeitas.

2007-08-28

Desgarrada 15 (enfim, a ira)

O vizinho do homem da tarte de morango repetiu pela terceira vez para o balcão:
- Olhe lá, então a minha torrada, vem ou não vem?
A tarde esfumava-se rapidamente dando lugar ao breu que, dada a época, às sete já imperava. Lá fora, os candeeiros acenderam-se, antecipando-se às estrelas que por vezes a poluição não deixava ver.
O vizinho do homem da tarte de morango repetiu pela quarta vez para o balcão:
- Olhe lá, então a minha torrada, vem ou não vem?
As luzes do restaurante acenderam-se e o palco onde as agora oito pessoas interpretavam mais um dia da sua vida, não sabendo ainda que seria um dia menos vulgar que os outros, pouco atraía a atenção de alguns traunsentes que não paravam, retornando após alguns olhares às suas deambulações de fim de tarde.
O vizinho do homem da tarte de morango repetiu pela quinta vez para o balcão:
- Olhe lá, então a minha torrada, vem ou não vem?
Oito pessoas, pois as restantes três estavam escondidas dos olhares dos traunsentes, estando por outro lado duas delas a ser bastante observadas. Das oito, duas de um lado do balcão, uma do outro lado do balcão, três numa mesa, duas noutra mesa, a formar um cenário por enquanto típico daquele restaurante.
O vizinho do homem da tarte de morango levantou-se do lugar e bradou:
- Estou farto desta merda!
Retirou ao mesmo tempo um enorme taco de basebol que se encontrava escondido nas calças largas, brandindo-o ameaçadoramente.
- Eu parto esta merda toda!
Um dos homens que se encontrava ao balcão comentou, em surdina:
- Bolas, afinal era aquilo...

2007-08-24

Desgarrada 14 (cabinda é uma bela cidade)

A meio de uma frase e sem que nada o fizesse prever ele beijara-me. Senti-me a explodir. Nem um olhar insinuante, nem um toque de mão, nem um roçar de lábios na face, nada. Completamente inesperado surgira aquele beijo profundo e íntimo. A boca e a língua dele tomaram-me de assalto com uma confiança lasciva. A surpresa ampliou o prazer daquela invasão. Ultrapassado o choque inicial correspondi explorando a sua boca com o mesmo frémito. As nossas mãos ganharam vida própria e dedicavam-se a explorações que algo muito ao longe me tentava dizer não serem próprias para o local onde nos encontrávamos. Mas eu já estava para além de qualquer capacidade de processamento de informação.
Não sei quanto tempo passou. Perdi a noção de tudo excepto dele. Apartámo-nos tentando recuperar o fôlego e trocámos um olhar de profunda fome animal. Senti que precisava refrescar qualquer coisa. Provavelmente era a cabeça!
- Vou ao W.
Vi então que interrompera os nossos companheiros de mesa. Não reparara antes, como é natural, mas também eles estavam estusiasticamente a beijar-se. Abanei a cabeça de incredulidade. Aquele restaurante devia utilizar ingredientes muito exóticos.
Dirigi-me à casa de banho, ainda com as pernas trémulas e sentindo-me muito quente e húmida. Para ser sincera, a escaldar e completamente alagada.
Abri a porta e deparei-me com a ruiva espampanante a abocanhar sofregamente o membro de um matulão que gemia de olhos fechados. Eles nem se aperceberam que eu estava à porta. Não sei explicar porquê... acho… mas deixei-me ficar ali a vê-los.

2007-08-23

Desgarrada 13 (preguiça)

A casa-de-banho era um cubículo pequeno. A ruiva tinha um cubículo enorme. Mas não sei se era disso, do calor, dos nervos, do vinho, do local, do cheiro, da emoção, da expectativa ou de outra coisa qualquer. Só sei que aquilo não erguia e eu já estava a desesperar.
- Andamos preguiçosos, hoje? - Perguntou ela, docemente, mirando o palhacinho. Depois olhou para mim, piscou-me o olho e sorriu.
- Não te preocupes. Comigo a dar à chave todos os motores arrancam...

Desgarrada 12 (vaidade ... e não explico)

Entrei no restaurante e reparei imediatamente num de dois homens que petiscavam uns pica-paus. Noutra mesa, mais a meio do restaurante, duas mulheres e dois homens conversavam animadamente. Reparei novamente num dos homens que petiscava uns pica-paus. Observava a mesa de quatro quando repentinamente os dois casais começaram a trocar sôfregos e lascivos beijos. Reparei novamente no homem, mas isso já sabem. Dirigi-me ao balcão e pedi um tango. O chato do meu colega ainda não tinha chegado. Os beijos dos casais aqueciam cada vez mais e iam captando a atenção do homem dos pica-paus, que por sua vez captava a minha atenção. Era bom. O gajo.
Ele levou mais uma garfada de pica-pau à boca. Apetecia-me lambuzar aquela boca carnuda. Imaginei o gozo de sentir a barba rala que lhe cobria a cara a arranhar-me as costas. O corpo musculado exposto numa camisola de alças e uns calções bem curtos faziam-me deambular até à pujança da sua virilha. Nesse momento o desejo era tão forte que faria sexo com ele em cima daquela mesa regada a molho de pica-pau. O meu colega chegou e como sempre começou a tagarelar:
- Então pá, quem é a miúda que levas à pendura para a concentração deste fim-de-semana? São sempre umas brasas…
Felizmente ele chegara a tempo de cortar a erecção que me iria denunciar em pleno restaurante. Alarguei o nó da gravata e respondi:
- Uma ruiva.

Desgarrada 11 (avareza)

Ao ver a ruiva afastar-se, decidi levantar-me e segui-la. Os meus companheiros ainda emitiram algumas expressões de protesto:
- Onde vais?! Deixa a miúda!
- Volta aqui, a gaja não vale a pena!
Mas valia. E valia bem! Ela voltou a sentar-se na mesa do canto, no mesmo lugar que ocupara antes. Aproximei-me e, enquanto retirava um isqueiro do bolso das calças, disse-lhe delicadamente:
- Pediste lume...
Ela olhou-me de alto a baixo e, após uns instantes, atirou:
- Não é isso que eu quero que tires de dentro das calças.
Fitámo-nos durante breves instantes. Então, dirigi-me para as casas de banho. Ouvi-a mover a cadeira, e depois também os passos dela enquanto me seguia. Era mesmo ali, no restaurante, que ia acontecer. Um ímpeto do momento. E ela seria só para mim, só minha! Minha, minha, minha, minha, minha, minha, minha, minha, minha, minha! (Pronto, já chega, creio que já se percebeu que tinha que relacionar isto com o título...) Entrámos na mesma casa de banho e trancámos a porta. Os meus companheiros que esperassem!
De qualquer modo um deles ainda se ia demorar com a torta de morango.

Desgarrada 10 (inveja)

Olhei os dois homens na nossa mesa. Apercebi-me que estavam tão embasbacados a olhar para o decote da ruiva, que não conseguiam responder. Certamente já tinha bebido demais pois não me contive:
- Apesar de não ser um cavalheiro tenho lume. Mas visto não trazer nenhum cigarro na mão, concluo que o meu lume não serve para incendiar aquilo que pretende.
Ela fez uma imitação infantil de dama ofendida e afastou-se a rebolar as ancas.
Os nossos convivas reclamaram sarcasticamente:
- Que maldade! Coitadinha da menina, só estava a precisar de um colinho.
- E aposto que qualquer um de vocês estava disposto a fazer o sacrifício.
- Somos uns abnegados.
- Reparei que desde o início os dois a comiam com os olhos. A miúda é bonita e tem um corpo fenomenal, mas tem um aspecto embrutecido e ordinário. Do tipo “não leio livros, nem uso cuecas”.
O meu herói engasgou-se a meio de um gole de cerveja.
- A tua perspicácia raia a clarividência. De facto ela não trazia… hum… nem um livrinho.

2007-08-22

Desgarrada 9 (luxúria)

A pergunta ficou a pairar no ar. Ela estava finalmente ali, ao meu alcance. Desde que a vi, quando entrei no restaurante, que a achei perfeita, divinal. Nenhuma outra alguma vez me fascinou tanto só de olhar para ela! Tinha também a ligeira noção de que, para meu embaraço, os meus companheiros descortinaram desde o início o feitiço que me atingiu vindo daquele canto. E a forte cor vermelha, que muitos poderiam afirmar não ser natural, era para mim perfeita e linda, combinava tão bem com o resto da sua silhueta maravilhosa! E continuava ali, à espera de uma palavra minha, que a colocasse à minha mercê, para dela dispôr como me aprouvesse. A excitação aumentava exponencialmente. Ocorreu-me um pensamento estranho, o de desejar que não tivesse pêlos. Nunca gostei da sensação de ficar com um pêlo na língua. Mas afastei rapidamente o pensamento, já me tinha sido dado a perceber que ali seria muito improvável encontrar um pêlo que fosse.
Decidi-me e respondi, finalmente. Aquilo que todos sabiam, que era para mim aquela a eleita, revelou-se através da minha trémula voz.
- Para mim, pode ser uma fatia da tarte de morango.
O empregado afastou-se com o meu pedido para a sobremesa. Reparei enquanto esperava que a ruiva se tinha aproximado da mesa do grupo barulhento e lhes dizia qualquer coisa que não consegui perceber.

Desgarrada 8 (gula)

Olhei-o gulosa. Já não tinha idade nem figura para desejá-lo. Mas que podia eu fazer? A vontade cegava-me as perspectivas. Era um anseio tão forte e tão físico. Queria-o, desejava-o, antecipava o momento de o sentir meu. De o agarrar, de lhe tocar suavemente com os lábios, de o lamber, enfim, de o comer…
Suspirei e pedi:
- Quero aquele duchesse por favor.
A jovenzinha ruiva com ar ordinário da mesa do fundo aproximava-se. Mirei-lhe o rosto. As suas intenções estavam esparramadas nos seus olhos e expressão. Com a subtileza de uma vaca numa loja de cristais, perguntou:
- Algum dos cavalheiros tem lume?