2007-06-18

A Última Morada #1

O número quinze é pequeno, dois andares apenas, o outrora sóbrio tom cinzento claro alterna agora com o negro ali deixado pelas décadas de intempéries. Entalada entre dois irmãos mais altos, a triste construção ali jaz com o andar do topo degradado e assustador ao luar e o do meio assim-assim, pelo que os olhares se habituaram desde há muitos anos a não se desviarem da tasca do Chico, situada no rés-do-chão, quando dali se aproximam os seus donos durante as deambulações nocturnas. A tasca do Chico é popular apesar da ameaçadora sombra do andar cimeiro, a limpeza situa-se acima da média das tascas, o local é de encontro e de convívio sobretudo para homens de barba rija que na sua alegria alcoólica gritam, esbracejam e gargalham como se em competição uns com os outros estivessem, cada um mais alto que o outro, até que a rouquidão e a bebedeira os vençam. Naquela noite, chegado ao castiço poiso após ter sido arrastado por companheiros de bar com quem frequentemente relembro tempos idos - os tais em que era capaz de recordar a última vez em que tinha acordado sem ressaca - desperto já sentado numa mesa situada discretamente num cantinho pouco iluminado. Espalhados pelas mesas envoltas em fumo e ruído, vários grupos debatem os seus temas de interesse inquestionável, como o último resultado do Benfica ou as ancas da vizinha do lado. É então que ouço, da mesa do lado, um debate afincado sobre o segundo andar do número quize, este onde fica a tasca do Chico, oriundo dos três velhos que a rodeiam e que à vez atiram com a sua opinião sobre uns hipotéticos ocupantes. "Aquilo não tem explicação", "a velha diz que os ouve a andar de um lado para o outo a meio da noite", "há quem diga que morreu ali uma família inteira, desde então os seus espíritos vagueiam", "se calhar pensam que ainda estão vivos", "mas então porque não saem dali?", "devem saber que estão mortos", "e gostam do sítio ondem viveram", "és capaz de ter razão". Fico incrédulo com esta conversa. "Perdão, julgo ter ouvido os senhores dizer que há fantasmas no segundo andar", "é verdade, há mesmo, e quem o garante é a velha do primeiro, que vive ali há tanto tempo a ouvi-los e por isso já se habituou, de tal forma que mal sai de casa, eu pelo menos nunca a vi na rua", "nem eu", "nem eu". A minha cabeça ainda está algures entre as nuvens e os Pirinéus, cansada e anestesiada, e assim que fecho os olhos sinto-me voar, embora o meu pensamento fique, tal como o meu corpo, naquele número quinze. E mesmo quando me arrastam até casa por não poder andar, nenhuma outra coisa senão aquele número quinze invade a minha mente. Mesmo adormecido, decido que no dia seguinte vou fazer duas de três coisas: falar com a velha, enfrentar os fantasmas e deixar de beber.