2015-07-20

Alface

Eram quase oito e meia quando bateram à porta. Corrijo, bateram contra a porta.
Levantei-me e, tão rápido quanto pude, fui abri-la. Era o Morto. Subtil como sempre, pensei.
Nunca percebi porque lhe chamavam Morto. Não estava obviamente morto. Mas também não me lembrei de perguntar.
- Olá - cumprimentou, com uma voz arrastada e rouca. Teria estado a beber?
- Então, estás bem? - retorqui.
- Vou andando.
Encolheu os ombros. Ou teria sido um espasmo?
Voltei para a cozinha, com o Morto atrás de mim. Ofereci-lhe uma cadeira e sentei-me.
- Estava a almoçar - apontei para o prato. - És servido?
O Morto analisou a minha refeição com curiosidade.
- Obrigado, já comi.
- E então, há novidades?
O Morto começou a responder, mas uma tosse violenta assolou-o. Era, obviamente, o resultado de décadas a fumar. Bati-lhe nas costas firmemente, mas com cuidado.
Quando acalmou, disse lentamente:
- Juntaram-se mais dois ao grupo, hoje. Andavam perdidos por aí, à procura de comida.
Eu sorri.
- E então, estão a adaptar-se?
- Penso que sim - vi um brilhozinho maléfico momentâneo no olhar do Morto. - Um deles ficou um pouco maltratado. Enfim...
Era o costume. As pessoas não tinham comida, morriam à fome, e quando nós oferecíamos uma alternativa de subsistência, resistiam. Claro que tinham que dar algo em troca, mas o Mundo sempre funcionou assim. Ninguém dá nada a ninguém. E muito menos com a crise que agora se havia instalado.
Recomecei a comer.
- O que é isso? - questionou o Morto.
- Alface.
Fez uma pausa, e sorriu. Faltava-lhe mais um dente.
- Agora comes saladas?!
- Sempre fui vegetariano, porque é que havia de mudar agora?
- São circunstâncias diferentes. Precisas de energia para lutar e resistir. Não te vais aguentar muito tempo a comer essas coisas.
Olhei para ele de soslaio. Acrescentou:
- É como dizia a minha avó, salada não puxa carroça.
Não era bem assim que eu me lembrava do provérbio, mas deixei passar.
Fez-se silêncio.
- O que aconteceu ao teu dente?
O Morto encolheu os ombros.
- Perdi-o. Não era verdadeiro, de qualquer maneira. Depois arranjo outro.
Dei uma gargalhada. A forma como o Morto resolvia facilmente os seus problemas era notável.
- Acredito. Vais tirar um a um dos novos recrutas, calculo.
Sorriu de felicidade, como uma criança de cinco anos a quem se dá um presente de Natal. Creio ter-lhe dado a ideia que precisava, pois levantou-se de imediato.
- Bom, tenho que ir.
- Muito que fazer?
Continuava a sorrir.
- Sempre.
Continuei a comer.
- Então, adeus.
- Adeus.
Saiu, batendo desajeitadamente com a porta da rua.
Fiquei pensativo, a olhar para uma folha de alface. De facto, talvez o Morto tivesse razão. Esta comida já não era para mim.
Levantei-me e fui até ao quarto. Estava desarrumado e sujo. Quanto a mim, até tinha medo de me ver ao espelho. Mas arranjei coragem. Estava desgrenhado, mas não muito pior que no dia anterior.
Um pensamento ocorreu-me novamente: nunca percebi porque lhe chamavam Morto. Não estava obviamente morto.
Pelo menos, já não.
Fiquei ali especado, em frente ao espelho, a pensar em como os zombies tinham mau aspecto.

1 Comments:

Blogger Meriel said...

Noc,

As saudades que eu já tinha de zombies e alface!!! Muito bom.
Mas e a história da gaja?

10:38 da manhã  

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