2015-07-22

Ontem matei os neurónios maus


Paulo chegou a casa, exausto, como de costume. Mandou o casaco para cima de uma cadeira, tirou a gravata e o relógio, descalçou os sapatos e estendeu-se no sofá. As chatices do trabalho ainda lhe ocupavam os pensamentos.
Nem dois minutos depois o silêncio começou a castigar-lhe os ouvidos. Pegou no comando da TV e num zap rápido parou no primeiro canal de desporto. Já com a sala cheia de vozes, levantou-se, foi até à mesinha do canto, serviu-se de um generoso whisky e deu dois bons goles. Antes de voltar ao sofá decidiu que era melhor levar a garrafa consigo.
Olhou à volta, pensando que a casa estava a ficar tão suja que qualquer dia não tinha remédio e o melhor seria mudar de casa. Riu-se sozinho com a estupidez deste pensamento. A vida estava mesmo boa para mudanças de casa! Com a desculpa da crise, já lhe levavam metade do ordenado em impostos. O raio da crise começou por lhe chegar na perda dos pequenos confortos. As saudades que ele tinha da sua ucraniana. Sua, salvo seja, mas a velhota era o anjo que semanalmente transformava o seu apartamento num imaculado lar. Bem, imaculado sim, que ela limpava tudo mesmo muito bem, lar é que era duvidoso. Desde o divórcio nunca mais sentira que tinha lar.
Bebeu mais um grande trago do seu whisky.
Lar é família reunida num espaço confinado onde se inferniza e se ama. Soltou uma solitária gargalhada e pensou que depois de velho estava a dar em poeta.
Mas na verdade as filhas tinham crescido e agora já nem aos fins-de-semana iam a sua casa. A bem dizer nem à casa da mãe. Estavam na fase do viver juntas com os namorados.
Modernices que um homem de cinquenta anos, supostamente, deveria compreender.
Cinquenta anos, quase cinquenta anos, faltavam apenas três dias. Mirou a sua “pança de cerveja” e pensou que raio de nome tinham inventado. Ele até bebia pouca cerveja. Ele era mais whisky e, olhando o copo quase esquecido na sua mão, bebeu o que restava. Pegou na garrafa e atestou o copo de novo.
Hoje ia precisar de uma dose um bocadito mais forte. Aquele encontro casual à porta da papelaria deixara-lhe a boca seca e um hálito amargo. Porque é que fora comprar tabaco? Ainda tinha quatro maços em casa. Como dizia o outro “não havia necessidade”. Mas fora, e bolas! Assim que se cruzara com ela reconhecera-a. Querida Joana. E estava linda e boa como sempre. Os olhos tinham-lhe fugido de imediato para o generoso decote. E vieram-lhe à memória os tempos em que as suas mãos por ali deambulavam livremente. Mas controlou-se e subiu o olhar até aos olhos castanhos impecavelmente pintados. Arrependeu-se. Eram espelhos que lhe devolviam a sua imagem desgastada e envelhecida, dizendo-lhe “Como tu estás! Tão acabadinho! Ainda bem que me deixaste!”. Nesse olhar misto de desagrado, desprezo e pena, ele sentiu-se reduzido a um pensionista que joga suéca no banco de jardim.
Perdido nestes pensamentos emborcou o whisky de uma vez e voltou a servir-se.
Também, a miúda era mais nova que ele uns dez anos. Ele com quarenta também ainda estava em forma. Encolheu a barriga e tentou lembrar-se como era dez anos antes. Desistiu, pensando que as gajas é que se preocupavam com essas tretas. Um homem é um homem. Com barriga, com barba branca, com careca, seja lá como for. Não são esses pormenores que nos tiram a confiança.
Três goles mais tarde ainda não tinha percebido o que lhe tirara a confiança. As pitas de vinte anos a quem não conseguia achar graça porque se lembrava sempre que tinha duas filhas da mesma idade? As fulanas da sua idade que o tentavam seduzir apertadas em cintas e meias para as varizes? Noites de mau sexo e ainda pior companhia?
Nicles. Nem ideia. Não sabia porquê, ultimamente não tinha vontade. Sabia que não era sexo que lhe andava a fazer falta. Mas até nos seus pensamentos lhe custava admitir o que de facto lhe fazia falta. No entanto, o pensamento, veloz na mente já ligeiramente turva, foi: faz-me falta o amor. Levantou-se e com uma careta gritou alto “Bolas, pareço uma menina de quinze anos!”.
Ficou tonto de tão rápido se levantar. Costumava aguentar bem a bebida, mas sentiu a sala a balançar. Decidido a “ensopar” o estômago e quebrar aquela vergonhosa linha de pensamento, foi até à cozinha e enfiou uma refeição congelada no microondas.
Foi bebendo mais uns goles, enquanto o prato girava, tentado pensar no jogo de sábado e nas possibilidades de ganharem o campeonato.
Voltou para a frente da tv, com a paparoca quente e o copo. Agora com a comida até ia uma cervejola. Mas não voltou a levantar-se e acabou por acompanhar o repasto com whisky. E os três cigarros que se seguiram à refeição também foram generosamente acompanhados pela sua bebida de eleição. De eleição o tanas, pensou, que a crise já não me deixa chegar ao whisky velho.
Acordou e assustado olhou em volta, pensando onde estaria o cigarro que estava a fumar. Estava caído no chão, felizmente apagado e mais uma vez o desastre não acontecera. Um dia destes ia ser como nas notícias, os bombeiros a confirmar que tinha morrido carbonizado no sofá porque adormecera a fumar.
Bolas, já era de dia!
Levantou-se, tonto, procurou o relógio. Era tardíssimo. Se tomasse o duche de que tanto necessitava já não ia chegar a horas ao trabalho. Mas tinha que ser. Estava amarfanhado por dentro e por fora. E precisava de água a correr-lhe na cabeça durante aí uma meia hora para estar em condições de conduzir.
Cinco minutos de água fresca na cabeça acordaram-no o suficiente para começar a pensar racionalmente. E a ideia surgiu forte e clara na sua mente. Tentou afastá-la como idiota e parva que era. Mas a ideia voltava. E abanou a cabeça numa negação do que lhe ia na alma, mas a decisão estava definitivamente tomada. Ia pagar para ter amor!!!
Chiça, ao ponto a que ele tinha chegado! E muitas questões lhe foram surgindo. Será que vou passar uma vergonha do caraças? Será que vai correr tudo bem? E será que pagando haveria amor? A todas as questões tinha de responder com: só depois de experimentar é que poderei saber.
Nesse dia, depois do trabalho, pouco confiante mas decidido, procurou o estabelecimento de que já ouvira falar. Sem certezas, entrou naquele espaço barulhento, quente, húmido e escuro. Procurou a dona e disse-lhe ao que ia. A mulher, depois de receber o dinheiro da sua mão, levou-o para uma salinha nos fundos e disse-lhe “Aí estão. Escolha a que mais lhe agradar”.
Paulo percorreu a sala com o olhar e soube de imediato que ela era perfeita para si. Linda, com uns olhos verdes capazes de enfeitiçar qualquer um.
Esticou os braços e, gentilmente, agarrou-a fazendo-lhe carinhos.
Ela não se fez rogada, com um olhar carregado de amor, deu-lhe uma marradinha, ondulou a cauda e disse-lhe “Miau!”.

1 Comments:

Blogger Nocturno said...

Cinco estrelas :)

8:42 da tarde  

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