2006-06-22

Ilusão

Desilusão, era essa a melhor descrição que encontrava para o seu estado de alma. Sentia-se só mas já sem forças para encontrar uma companheira, o amor, a felicidade. Por isso fora tão difícil acordar naquela manhã. A magia do sonho prendia-o à cama, aquela visão onírica tão perfeita fazia com que o despertar equivalesse à morte.
Os meses foram passando mas a memória do sonho perdurava. A praia, a lua, a música que ouve mas não consegue reter. A mulher que dança e rodopia de braços abertos em movimentos graciosos de gazela. Rosto indistinto, focava apenas o cabelo castanho claro com caracóis que brincam em reflexos difusos até à cintura. Então ela pára e de costas para ele exclama “Que belo!”. Ele olha o vazio para além dela sem perceber. Ela pergunta triste “Não consegues vê-lo?”, ao não mudo que fica no ar ela responde com voz hipnótica “Vou ensinar-te a vê-lo! Ama-me e verás!”. Nessa altura ele sente-se tomado por um sentimento de amor imenso. Aproxima-se dela com a certeza absoluta que necessita abraça-la. E então vê-o, um magnífico cavalo branco que brilha ao luar. O seu braço está quase a toca-la quando ela avança e monta o belo cavalo. Velozes desaparecem na escuridão de uma noite da qual fugiram todas as estrelas e cuja lua se apagou. Tantas foram as noites em que adormeceu com a lembrança daquele sonho a aconchegar-lhe o espirito!
Aquela semana fora das piores nos últimos anos. Os problemas pareciam ter vida própria e muita imaginação. Quando a Mónica lhe ligou para sair com um grupo de malta naquela Sexta à noite a sua vontade foi dizer logo que não. Mas precisava de beber uns copos e beber sozinho é ainda mais deprimente. E maluca como era aquela miúda ele iria certamente divertir-se. Na realidade ela era desvairada, desmiolada e depravada. E os amigos que ela arranjava eram sempre umas preciosidades, do menos normal que ele já conhecera. O que era mesmo muito bom, farto de gente normal andava ele. Assumidamente sentia-se bem com aquele bando estranho e exótico com o qual se identificava pela anormalidade.
Juntaram-se no cafézinho do Bairro Alto. Eram muitos e muito barulhentos. E várias as caras que não conhecia. Depois de um dia tão quente o abafado e pequeno café parecia um forno em lume brando. Felizmente, meia dúzia de bebidas mais tarde, decidiram ir para um bar de praia para os lados de Cascais.
O teor alcoólico da noite fê-lo deixar o seu carro para trás e deu por si no banco de trás de um carro estranho. Os cinco carros atestados despejaram os aliviados passageiros nas proximidades de uma praizinha lindíssima iluminada pela lua cheia.
Aquele bar era mesmo ao seu gosto, simples, despretensioso, com boa música e bem fornecido de bebidas. Tinha umas mesinhas confortáveis e um estrado de madeira para quem quisesse dançar sem enterrar os pés na areia. Ele sentou-se com mais uma bebida a apreciar a pequena enseada e a gozar o fresco da noite. A Mónica avançou para a básica pista de dança acompanhada por diversos amigos. Ele começou a observar a trupe dessa noite, vendo-os a dançar e relembrando as conversas do café. Como sempre era um grupo bem heterogéneo em que os únicos lugares comuns eram a extroversão e a capacidade de falarem, pensarem e agirem sem medos. Os restantes frequentadores do bar olhavam aquele grupo estranho com ar entre o inquiridor e o receoso. Tínhamos um “rasta” branco vestido de cores garridas que dançava aos saltos, um “nerd” de canetas no bolso que contorcia a cintura como num samba, um negro vestido de Lacoste que seduzia a Mónica – como se ela precisasse – numa espécie de slow-valsante, duas beldades em top e mini-saia que se roçavam e beijavam numa dança declaradamente erótica e um grupo que executava uma dança pagã conjunta num cerimonial quase druídico. Viu então que no centro do círculo estava uma mulher na qual não reparara antes. Estava vestida de forma muito simples, saia até aos tornozelos branca com florinhas azuis, uma blusinha escura com um decote discreto e dançava descalça. Ela rodopiava de braços abertos no centro do grupo comandando aquele bailado ritual. Sondou-lhe o rosto expressivo e forte, fixou-lhe o olhar poderoso e hipnótico, apreciou-lhe o cabelo comprido e ondulado girando á volta do seu rosto. A dança terminou e o grupo suado e alegre avançou pela praia em direcção ao mar. Onde simplesmente se despiram e se lançaram em corrida num mergulho nocturno. Ele observou sem malícia aqueles corpos nus que à luz da lua pareciam alvos golfinhos a regressar ao mar. Decidiu imitá-los. Despiu-se, mergulhou e nadou para junto deles. E no meio das gargalhadas e brincadeiras infantis sentiu-se de súbito como parte daquele bando, sentiu uma união com aquelas pessoas como há muito não sentia com ninguém. Quando saíram da água, vestiram-se e, depois de uma passagem pelo bar para reabastecimento, sentaram-se todos na areia a conversar.
Em pouco tempo deu por si a conversar quase exclusivamente com a “sacerdotisa”. Ela riu-se muito quando ele lhe chamou aquilo e mais ainda quando ele lhe disse que a achava parecida com a Janis Joplin. A conversa cresceu e divagou de forma tortuosamente inteligente. Era uma delícia conversar com ela.
As horas tinham passado sorrateiramente sem o avisarem. Chegara a hora de voltar. Ela também deixara o carro em Lisboa, por isso resolveram regressar no mesmo carro. Lá estava ele de novo no banco de trás de outro carro estranho, entalado entre ela e o amigo “rasta”. Brincou, riu e cantou com os restantes. Mas aos poucos esmoreceram. As primeiras cores da madrugada começavam a tingir o horizonte e eles, exaustos, recostavam-se no banco.
Mas eis que ela, olhando a janela onde na semi-escuridão passava velozmente a paisagem, exclama “Que belo!”. Ele sentiu um choque percorrê-lo, era muito mais que um “dejà vu”, era o reconhecimento. Perguntou-lhe “O quê?” e ela respondeu excitada “O cavalo. Não estás a vê-lo?”. Adivinhando já a resposta questionou “Como é o cavalo?” e ela com um sorriso enorme disse “É branco. Tão branco que brilha ao luar!”. Ele soube então a verdade. Segurando o rosto dela entre as mãos e olhos nos olhos disse-lhe “Fica comigo.”.
A pancada tremenda foi acompanhada por um barulho terrível, o carro rolava descontrolado. O embate arrancou por completo a parte posterior direita do automóvel. Ao seu lado havia agora um vazio negro que se propagou à sua alma. O pensamento toldava-se rapidamente mas uma última ideia lúcida trespassou-o: o cavalo branco era uma forma pura como só a morte consegue ser.
Acordou numa cama estranha num despertar amargo com cheiro a desinfectantes. Percebeu que estava num hospital. Após algumas tentativas frustadas e acompanhadas por dores lancinantes em todo o corpo conseguiu alcançar o botão.
Um médico e uma enfermeira surgiram rapidamente à sua cabeceira. Tentou falar e acabou por conseguir dizer numa voz sumida “Ela?”. O médico falou-lhe como a uma criança “Está tudo bem. Você está ferido mas vai ficar bem.”. Ele repetiu mais alto “Ela? Onde está?”. O médico franziu o sobrolho e respondeu-lhe “Lamento mas os seus três amigos não tiveram a sua sorte. Faleceram.”. Ele impacientou-se e soerguendo-se na cama quase gritou “E ela? O que lhe aconteceu?”. O médico pediu baixinho qualquer coisa à enfermeira e depois disse-lhe “O carro em que seguia tinha quatro ocupantes, todos homens, você foi o único a sobreviver. Daqui a cerca de um mês já estará recuperado. Por agora vamos dar-lhe um sedativo para que consiga descansar.”
Deixaram-no só com todas as dúvidas, medos e fantasmas a rolarem na sua cabeça já alterada pelas drogas de Orfeu. E nos braços deste reviveu a noite anterior, tão real e viva quanto ela ao seu lado ao pronunciar as palavras “... brilha ao luar” e a sua resposta urgente “Fica comigo” .
Acordou com o barulho horrível do embate, alagado em suor e com uma mágoa e angustia que chegavam à náusea. Era um sonho de novo e ele perdera-a de novo. Sentou-se na cama e chorou amargamente.
Para sua felicidade e tormento este sonho tornou-se recorrente. Todas as noites a amava e a perdia. Todas as manhãs acordava naquela cama de hospital sem saber o que fazer a todo aquele amor e perda. Mas com o passar do tempo deixou de chorar, sentia agora que devia fazer alguma coisa, que não podendo mudar o rumo da sua vida podia conseguir mudar o rumo do seu sonho.
E o sonho deixou de ser uma visão estática, aos poucos foi sofrendo pequenas e subtis alterações. O desconforto inexplicável ao entrar no carro, a amargura de ter de regressar, a sugestão que ela acolhia com um sorriso trocista “vamos ficar aqui os dois mais um tempo”, a certeza que não deveriam estar juntos naquele banco de trás, a convicção de que tinha de a convencer a não regressar de automóvel.
Dirigiam-se ao carro, o divertido “rasta” cantava o “Eye of the Tiger”, segurou-lhe a mão e disse-lhe “Amo-te.”. Ela quase saltou de surpresa e respondeu “Mas conhecemo-nos há pouco.”. Ele peremptório afirmou “Não! Sempre te conheci. E não vamos entrar nesse carro! Vamos até à praia, o sol vai nascer, tu vais ensinar-me a ver.”. Ela riu à gargalhada “É a mais louca declaração de amor que já me fizeram. Mas como é que voltamos para Lisboa?”. Ele abraçou-a e enquanto caminhavam até à praia disse-lhe “Caminharemos juntos – piscou-lhe o olho – e também há comboios, claro!”. Aconchegaram-se na areia olhando a lua a pintar-se de alvorada.
Acordou de novo na cama, embalado no profundo amor e triste pelo esfumar da visão do final perfeito. Estranhou o cheiro agradável e familiar, sentou-se na cama e viu-a. Dormia profundamente, deitada na almofada ao seu lado, na sua cama, na sua casa e finalmente na sua vida.

Acordou, sobressaltado. A sensação daquele amor absoluto demorou a esbater-se e ele permaneceu durante muito tempo entre a alegria daquele doce sonho e a desilusão de ter que voltar à dura realidade.
Por fim, estremecendo com o frio matinal que o incomodava, saiu da estrebaria e iniciou a habitual cavalgada pelo verde pasto relinchando bem alto.

2 Comments:

Blogger Meriel said...

Eu sei, eu sei, é grande comócaneco e chatocomápotassa.
E, tá bem admito, li muito K.Dick quando era pequenina.
Pois, pois, o fim está brilhante, claro, não é meu!
É do Noc.
Obrigado amigo :)
E força para Sábado (com maiúscula:)
jocas

7:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Primeira reacção: "What?!"
O.K., resumindo, o coitado do cavalo tem um pesadelo em que sonha que é humano e se apaixona por uma humana. Digo pesadelo porque acho que mais vale ser cavalo, não se tem que enfrentar as lutas pelo poder e outras actividades afins características do vírus mais maléfico que este planeta alguma vez enfrentou. E tem a vantagem de, sem custos adicionais, se poder (an)dar na erva à vontade.
Aliás, vendo bem o fim não está assim tão brilhante. Há poucos cavalos que conhecem o "Eye of the Tiger" e pessoalmente só conheço o caso do Rocky.
O conto devia, uma vez mais, terminar com um elefante. Algo me diz que todos os elefantes sonham em ser cavalos, apesar de estes terem uma tromba mais pequena... De que serve a tromba se não se pode entrar em filmes porno com estrelas da política italiana?
O.K., hoje estou terrível...

12:13 da tarde  

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