2006-05-17

A Cidade das Sombras

Atiro o resto do cigarro para o chão imundo, fumar é um luxo cada vez mais raro e um dos poucos ainda permitidos. Olho para o relógio, é meio-dia, decido que ainda é cedo para me encontrar com o tipo dos relógios e dirijo-me para o bar mais próximo. Aproximo-me do balcão e peço um café, o empregado olha para mim de uma forma estranha e pergunta-me se tenho a certeza, - o café é outro luxo cada vez mais raro porque é muito caro e pouca gente o consegue consumir - eu digo que sim e ele pede-me o dinheiro adiantado. Estou ali dez minutos a olhar para a multidão que se acotovela para tentar chegar a algum lado, monotona e irracionalmente, coloridos nas vestes e cinzentos na alma. O mundo é estranho, tornou-se estranho mas ninguém quer saber nem pensa nisso, ninguém pensa no que quer que seja, os autómatos não pensam e eu saboreio o meu café, um dos últimos luxos, uma das últimas extravagâncias num mundo que cada vez é menos azul e mais castanho, menos verde e mais negro tal como o futuro de todos nós, uma raça condenada à partida porque pensa e sente. Acabo o café sem sabor a café e saio do bar, assaltado pelo Sol carrasco. Mais pessoas, mais autómatos, maldita humanidade que destruiu os animais, as árvores, os oceanos, o ar, a terra e a humanidade. As crianças que vivem sobrevivem, tentam proteger-se da luminosidade cancerígena e das sombras onde habitam autómatos que seriam homens se pudessem viver como homens. Olho de novo para o relógio - ainda tenho um relógio, faço contrabando de relógios, é a minha luta pela liberdade, hoje em dia quase todos têm chips e mostradores incrustados na pele que exibem horas ditadas por alguém, provavelmente alguém metade homem metade autómato, que alonga os minutos quando é preciso mais produtividade e tempo de trabalho, mas não eu, ainda uso um relógio a sério, assim consigo controlar-me e controlá-los, estar onde é preciso e desaparecer quando é preciso – e constato que está parado. Parou, avariou-se, há que chegar depressa ao homem dos relógios, se perco a noção do tempo não estarei à hora certa no lugar certo, serei detectado e perseguido, terei um chip algures no interior do meu corpo e serei um autómato como todos os outros. Tenho que correr, contar mentalmente os minutos, chegar o mais depressa possível, tenho que contar e correr, contar, correr, contar, correr, chegar.

O homem grisalho colocou o relógio de pulso com fundo cinzento e ponteiros negros perto dos outros relógios de pulso com fundo cinzento e ponteiros negros. Pegou no relógio que se seguia na fila interminável e começou a limpá-lo pacientemente com um pano enegrecido pela sujidade. Cada vez menos pessoas o procuravam e cada vez mais autómatos vagueavam pelas ruas cinzentas. Foi ao limpar o penúltimo relógio que sentiu a dor, uma dor aguda no peito, uma dor angustiante e final. Os seus instantes finais de vida foram de desespero, não por sentir a morte, mas por saber que com ele morriam todas as réstias, ainda presentes no coração dos homens, da esperança de um dia a liberdade habitar aquele forno planetário.

2 Comments:

Blogger Meriel said...

Digno do SI!
Mas dá vontade de ler mais, de continuar a viver a história, de descobrir que ainda há esperança e saber que o tic-tac não vai parar...
Eu sei, eu sei. Este meu optimismo demente e esta minha inocência retardada vão dar cabo de mim.
jocas

6:06 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pois lá está. É nisto que a humanidade se vai tornar, todos autómanos e felizes, pq cumprem a sua função. Lindo. A infelicidade do ser humano está na capacidade de questionar, só o tipo do relógio é que estava stressado, os outros iam á vida deles, autómatos mas com um dever e sentiam-se enquadrados.
Quando é que chega esta sociedade???
Eu quero ser um autómato.

R.

9:23 da manhã  

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