2006-05-09

O Início do Fim

Foi uma das mais belas e terríveis noites da minha vida.
Depois de um dia nas canoas, na água parada da barragem, em que qualquer avanço era feito à força de braços, estávamos todos exaustos. Apenas tínhamos parado à hora de almoço, numa ilhota minúscula, para comer uma sandes e beber um sumo.
Chegados à calma baía, abandonámos as canoas e subimos a pé a berma daquele pequeno rio com um objectivo maior: o jantar.
E que jantar! Uns quilómetros depois chegámos às cascatas e vimos as carrinhas e os senhores de camisa branca e papillon a prepararem o festim.
Era uma cena estranha, “nonsense”. De um lado um grupo de gente suada, de calções, t-shirts e sandálias de praia. Do outro elegantes empregados de mesa que dispunham em alvas toalhas belos pratos e copos de pé alto, abriam boas garrafas de vinho e guarneciam bandejas de deliciosas iguarias.
Decidimos tomar um banho nas cascatas enquanto não tocava para rancho. Deitados por baixo das quedas de água desfrutámos de uma massagem que aliviou os ombros doridos, os braços cansados, as mãos entorpecidas e as pernas esfoladas.
Já lavados atacámos o banquete. Que delícia, a comida era da mais saborosa que provei na vida e o vinho uma verdadeira homenagem a Baco. Ou então, estávamos mesmo esfaimados. Soube-nos de facto a algo de transcendente.
Comemos, bebemos e rimos até chegar à hora de partir. A prova nocturna começava à meia-noite. Decidimos então que a noite estava a ficar fria e que sem camisolas seria melhor levarmos algo que nos aquecesse. Lá convencemos os nossos simpáticos anfitriões a aliviarem-se da carga excessiva que tinham nas carrinhas. Muito bem dispostos e acompanhados por umas belas garrafas de vinho tinto, fomos descendo pelo trilho da berma do rio até chegar às canoas.
Estava uma noite perfeita de lua cheia, sem nuvens e sem luz eléctrica a atrapalhar por perto, o céu parecia uma teia cintilante de estrelas.
Distribuíram tubinhos fluorescentes por todos nós. Eram para colocar no pescoço, mas o meu grupo de amigos achou por bem que, sendo nós anjos, deveríamos usá-los na cabeça.
Cada um entrou na sua canoa, com a sua garrafa de vinho, e pagaiámos para o largo. Fazíamos concorrência às estrelas que brilhavam no céu pois como pirilampos semeávamos a água com pontos de luz.
E então chegou a traineira que, qual barco mágico, brilhava como se várias estrelas tivessem descido até ela. De súbito a música começou. Era a música do filme “O Piano” que ecoava por toda a lagoa. Juntámos as canoas e de olhos fixos no céu, fomos passando as garrafas de boca em boca, enquanto aquela música nos trespassava a alma.
Era de facto magia, o meu amor na canoa ao lado, os meus amigos nas outras, o céu estrelado, a água plácida, a música transcendente, o vinho quente. Nestes momentos simples compreendo de facto a magia de estar viva.
Mas quebraram o encantamento, a prova começou. Tudo o que nos disseram foi que a meta e o acampamento eram no Trizio. Rimos muito, sem mapas, a única coisa que sabíamos era que tínhamos de subir o rio pelo braço principal até encontrar qualquer coisa. Mas como era suposto seguirmos a traineira, eu achava que seria uma brincadeira de crianças.
Como em muitas coisas na vida, estava enganada. Ao fim de alguns quilómetros chegámos à conclusão que seguir atrás da traineira não era viável. Ela deslocava-se tão devagar que uma pagaiada mais forte fazia-nos ultrapassá-la. E a noite estava de facto a ficar muito fria, precisávamos de nos mexer.
Alguns dos mais experientes decidiram partir e com canoas de competição em breve desapareceram no horizonte visível. O nosso grupo avançou de seguida, deixámos a traineira para trás e aos poucos fomos deixando muitas canoas pelo caminho.
O meu companheiro acelerou a cadência, comigo a acompanhá-lo. O céu começava a toldar-se com um nevoeiro fininho que nos gelava os ossos. Durante cerca de uma hora avançámos os dois, já sós, pois não se via qualquer luz para trás nem para a frente.
Precisava de descansar um pouco, tinha de parar. Chamei-o e expliquei-lhe. Mas ele achou que eu queria era fumar um cigarro e disse que ia continuar porque tinha frio. Desapareceu na curva de rio que se avistava mais à frente. Fiquei furiosa e, claro, fumei mesmo um cigarro.
Já recomposta avancei, convencida que ele me esperava do outro lado da curva. Mas não, nem sinal dele, aliás nem dele nem de ninguém. Fiquei magoada com o abandono, mas determinada a apanhá-lo para lhe dizer isso mesmo.
Mas mais uma hora se passou e eu continuava sozinha. A cada curva de rio que dobrava esperava ver uma luz a mover-se na água, mas nada. O nevoeiro era agora mais fechado e estava mesmo muito frio. De manga curta e de calções sabia que não podia parar de remar pois arriscava-me a uma hipotermia. Infelizmente o vinho terminara na baía. As bermas eram agora difusas e apenas as distinguiam por uma ou outra luz. Continuei já com medo de me enganar e seguir por um braço de rio secundário em vez se subir o principal.
Mas a situação piorava, agora o nevoeiro era mesmo cerrado e o frio insuportável. Decidi que caso avistasse outra luz que me indicasse a margem, iria encostar para procurar ajuda e abrigo. Ziguezagueava de margem a margem, mas a única luz que encontrei revelou-se uma desilusão, era um sistema de captação de água, estava deserto e não parecia ter estrada a partir de lá.
Sabia que tinha de continuar, não parar em caso algum, tinha de encontrar o acampamento ou alguém. As curvas de rio sucediam-se, abriam-se em esperança e fechavam-se em desalento. Já não conseguia ver nada à minha volta, só nevoeiro escuro e um pouco da minha canoa. Sabia que estava a abrandar o ritmo mas as forças estavam a desaparecer.
Mais uma curva de rio e nem uma luz à vista. Mas eis que ouço água a ser mexida atrás de mim, volto-me na escuridão e surge um pequeno aro fluorescente no meio do nevoeiro. Chamei “João?” e respondem-me “É aí o acampamento?”. Era mesmo um dos meus amigos, o João de aro na cabeça, qual anjo caído, trouxe-me todo o calor que eu precisava para continuar. Também ele avançava sozinho há mais de uma hora.
Juntos decidimos continuar pois não tínhamos alternativa, duas curvas mais tarde de novo ouvi remar atrás de nós. E gritámos para a escuridão “Quem vem aí?” e a resposta foi “É aí o acampamento?”. Respondemos que não e percebemos que tínhamos agora mais três companheiros desconhecidos.
Os cinco continuámos, avistávamos algumas luzes na berma, rumávamos para lá mas nunca era o acampamento. A dada altura pensei que já deveria ter parado por exaustão mas concluí que a necessidade de não ficar para trás e a vontade de sobreviver eram mais fortes que o cansaço. Acompanhei aqueles quatro rapazes com gana, cerrando os dentes para não gemer com as dores que as mãos a sangrar me causavam.
Finalmente vimos uma fiada de luzes alegres que só poderiam significar pessoas, abrigo, calor. Aproximámo-nos e um deles gritou “É aí o acampamento?”, várias vozes responderam “Sim!”.
Nunca esquecerei o sofrimento da última forte pagaiada que empurrou a minha canoa berma a dentro. Larguei as pagaias e tentei levantar-me. Não conseguia. Um deles disse-me “Anda, vamos beber alguma coisa quente” e eu respondi “Não consigo levantar-me”. Senti umas mãos fortes pegarem-me pelos braços e levantarem-me no ar. Estiquei as pernas dormentes e toquei com os pés no chão. Ele perguntou “Aguentas-te em pé? Posso largar-te?” e eu respondi “Podes. Obrigada!”.
No meio da noite soou então uma voz conhecida, “Querida, chegaste? Já montei a tenda”. Não me lembro bem do palavrão com que lhe respondi de volta antes de me remeter ao silêncio. Trôpega, subi a margem, procurei a minha mochila, despi a roupa gelada, vesti um fato de treino quentinho e, só, fui em busca de uma bebida quente.
Cinco cafés escaldantes mais tarde voltei a sentir prazer por estar viva. Mas desta vez apenas por mim. Nem amor, nem amigos, bebi a última caneca de café sozinha, a olhar o vazio escuro da água plácida e gelada que quase me levou.
Nove anos mais tarde separei-me deste amor incongruente que me tomava sem explicação.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Às vezes a realidade parece-se mais com a ficção do que a própria ficção.
Quanto aos sinais, sempre lá estiveram...

9:21 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Quero acrescentar que gostava também, um dia, de passar por uma prova de sobrevivência. Apesar de tudo, deve ser bom sentirmo-nos vivos depois de algo assim...
Enfim, se a pandemia chegar, talvez tenha essa oportunidade!

9:23 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

um fim de 9 anos...bom, começamos a morrer no dia em que nascemos, ou tvz antes. esta muito bom!

11:24 da manhã  

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