2006-04-06

A Ilusão da Imortalidade I

- Eles estão entre vós - sussurou o velho - mas raramente alguém repara neles. Podem vê-los mas nem se apercebem ou não ligam. Nunca lhes tocam, nunca os ouvem, nunca os cheiram. Sempre que tentam aproximar-se de um com o propósito de estabelecer um contacto acontece qualquer coisa que vos impede ou vos distrai. Estou a falar de fantasmas que navegam entre vós e têm intenções que estão para além da vossa compreensão.
A voz cavernosa do pescador arrepiava o grupo de adolescentes que se reunira naquela praia, como de costume, para ouvir os habituais contos fantásticos. Naquela noite, porém, o homem de barba branca não se limitou ao habitual. O vento frio assobiava e os jovens encolhiam-se nos agasalhos. Sónia abraçava o Lopes, o seu pequeno companheiro canino. O homem elevou a voz.
- Aquele velho que costuma estar sentado no banco do jardim durante todo o dia... digam-me, alguma vez lhe falaram? Já se vos dirigiu? E o homem que passa o dia na rua a vender rosas amarelas? Quem de entre vós já lhe comprou uma rosa amarela? Quantas vezes repararam bem nele ou o olharam nos olhos? Lembram-se vagamente de os verem, mas nunca de terem falado com eles.
O grupo permanecia em silêncio.
- Nunca acharam estranho haver uma velhota que todos os dias sai da padaria sem ter comprado pão? – voltou a sussurrar o pescador – Ou um mendigo que toca harmónica sem ter consigo um recipiente para receber moedas? São navegantes, digo-vos eu! Estão por todo o lado, passam por vós na rua, observam-vos! Vocês conseguem vê-los mas nunca lhes dão importância, pois eles servem-se da indiferença que esta nossa sociedade alimentou para poder passear entre os humanos. Misturam-se com as pessoas e há sempre algo que vos vai impedir de conversar com eles ou conhecer os seus intentos.
O velho levantou-se, mais cedo do que o habitual.
- Não vos aconselho a tentar tocar ou contactar com um deles. Há sempre algo que vos vai impedir de o fazer, e esse algo pode ser perigoso. Mesmo que conseguissem... ninguém sabe o que isso poderá desencadear... – hesitou antes de finalizar o discurso – Na verdade eu aconselho-vos a esquecerem esta noite e a viverem as vossas vidas o melhor que possam... remetendo-se à indiferença que aflige todas as outras pessoas.O pescador voltou-se e caminhou na areia para longe daquele grupo, desaparecendo na noite.