2006-04-06

A Ilusão da Imortalidade II

Toni nunca iria esquecer aquela imagem. O velho pescador, seu conhecido e amigo de há muitos anos, encontrava-se deitado no interior do caixão aberto. O que mais impressionou Toni não foi o facto de ter tocado a vez ao seu amigo mas sim que este, depois da morte, tivesse perdido a habitual pose temerária e altiva que sempre o caracterizara em vida. As rugas faciais da experiência, sacrifício e coragem tinham definitivamente desaparecido daquele rosto familiar e dado lugar a uma expressão vincada de terror que, mesmo com os olhos e a boca fechada, impressionava qualquer um que observasse o defunto. Algumas pessoas, sobretudo ligadas à pesca, tinham ido à igreja despedir-se do popular pescador.
Aproximando-se de Toni por trás, Sónia falou-lhe baixinho.
- Ali atrás disseram que ele morreu enforcado...
Toni respondeu sem desviar o olhar do caixão.
- Assim parece. Eu nunca iria acreditar... matar-se, ainda por cima no dia dos anos dele...
Permaneceram durante um bocado em silêncio.
- Não sabia que ele fazia anos ontem... nem lhe dei os parabéns... – lamentou Sónia.
- Ontem não, na Quinta-Feira.
- Mas ele esteve connosco ontem à noite... na praia.
- Estás enganada. Encontraram-no ontem ao fim da tarde. Morreu na Quinta.
Sónia abriu a boca para lhe dizer que quem estava enganado era ele, mas deixou-o em paz. Não devia ser fácil perder um amigo de longa data, principalmente naquelas circunstâncias. Voltou-se, saiu da igreja e chamou o Lopes, que esperava por ela obedientemente sentado à porta. O largo da igreja baseava-se num agradável jardim, onde principalmente ao fim-de-semana se via muita gente. Várias áreas cobertas de relva acolhiam miúdos que jogavam à bola e os bancos de jardim consistiam um poiso ideal para os namorados. Sónia decidiu passear um pouco. Reflectiu por algum tempo no discurso invulgar que o pescador tinha feito na noite anterior.
- Pois é, Lopes – murmurou baixinho para o cão, como costumava fazer muitas vezes – ele não regulava muito bem, é certo. Mas era uma companhia agradável. Calculo que o Toni não tenha ficado...
Subitamente calou-se. Ali estava ele: o velho sentado no banco do jardim, onde permanecia todos os dias. Parou durante algum tempo a observá-lo com atenção. As pessoas passeavam por ali quase sem reparar nele. Era uma presença habitual sobre a qual ninguém se interrogava. Pensou de novo no discurso do pescador e sorriu.
- Não, Lopes! Não vou cair nessa...
Continuou a caminhar, não despegando os olhos do velho calmamente sentado. Após alguns passos, Sónia exasperou-se consigo própria.
- Bolas, Lopes! Mas quem me manda ser assim? Agora não consigo deixar de pensar...
Parou, pensativa, até que tomou uma decisão.
- Vou falar com ele!
Deu dois passos determinados em direcção ao velho.
- Não vou assustar-me com histórias da carochinha, não achas, Lopes?
Olhou instintivamente para o sitío onde devia estar o cão, mas só encontrou o passeio do jardim.
- Lopes?
Voltou-se para trás, à procura do cão. Lopes tinha ficado entretido a cheirar uma caniche que entretanto se cruzara com ele. A dona da caniche, uma mulher obesa de meia idade e que entretanto reparara no Lopes, avançou para ele com uma expressão ameaçadora.
- Lopes!
Sónia correu em direccção ao companheiro, agarrou-o e segurou-o ao colo um instante antes de a mulher se chegar ao pé dele.
- Então, Lopes! Não vês que a mulher gorda é má?
Não ligando aos resmungos da mulher, Sónia afastou-se na direcção do banco de jardim onde vira o velho. Estacou a alguns metros. O banco estava deserto. Olhou em volta, confusa. Aproximou-se do banco, subiu para cima dele e observou toda a área em volta. Havia muita gente no parque mas nem sinal do velho.
- Bem, Lopes... por tua causa perdi o homem de vista. Mas também... era só uma parvoíce minha!
Desceu do banco e tomou o caminho de casa, a passos largos. Atrás dela, sentado no banco de jardim, um velho observava-a fixamente.

2 Comments:

Blogger Meriel said...

Noc,
Excelente!!!!
Gostei de tudo nesta historia que TEM de continuar.
Mas agradeço-te principalmente a homenagem ao meu Lopes, que espero bem ainda volte a assediar muitas cadelas. Só uma correcção: ele gosta delas matulonas, do tipo pastoras belgas, boxer, labrador. Mas sendo fêmea ele não é nada esquisito, acho que a caniche também marchava :) Espero que ele fiquem bom e que possa voltar "ao activo", já tenho saudades de ter de aturar um vizinho furioso porque a cadelinha de raça está grávida e “é do Lopes de certeza" , e eu "ele é baixinho, não pode ser ele o pai" e da resposta maliciosa "é pequenino mas muito atrevido".
E desta vez a “Sónia” está tal e qual, até nas frases.
Ah! O título é perfeito ;):))))))))))))
Resumindo: um dos meus preferidos até agora, continua sff
jocas

7:15 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Quem é a Sónia??
Lembram-se da publicidade "Os seios da Sónia"??
Muito fixe, fartei-me de gozar com ums Sónia que conheci.
E tinha uns belos seios hehehehehe.
Voltando á história, está interessante, avamos a ver onde isto vai dar.
Tens de continuar.

R.

1:39 da tarde  

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